Paragem de autocarro

Olhou para o relógio. Começava a arrepender-se de ter decidido esperar pelo autocarro em vez de fazer o percurso de quinze minutos a pé até ao bloco de apartamentos onde estava a viver desde que chegara à cidade. Puxou novamente a gola do casaco de encontro ao pescoço, tentando afastar o vento frio que teimava em entrar pela abertura do casaco. "Devia ter trazido um cachecol", pensou. Ainda não se adaptara à cidade e ao local de trabalho, por isso, a expressão triste e ligeiramente perdida no seu olhar. Lembrou-se da troca acesa de palavras entre dois colegas, devendo-se tudo a um mal-entendido. Como palavras inofensivas, ditas com uma entoação dura, podem ferir uma pessoa. Na sua opinião, se os colegas tivessem procurado conversar calmamente teriam chegado à mesma conclusão que ela - que tudo não passara de um mal-entendido. "Mas porque é que as pessoas não procuram comunicar-se melhor?". Nisto, baixou o olhar, com as mãos ainda agarradas à gola do casaco bem perto do pescoço, e reparou no olhar atento de uma criança, dos seus quatro anos, que, provavelmente, tentava perceber o porquê de tantas rugas de preocupação na sua testa. Forçou um sorriso mas desistiu logo. "Não tenho jeito com crianças mesmo. Ficam sempre sérias a olhar para mim. ... Ah, finalmente o autocarro!" Ela entrou e sentou-se defronte à criança e à mãe, na esperança que agora fosse diferente, que agora esta criança lhe desse, pelo menos, o vislumbre de um sorriso. A criança continuava a olhar para ela de forma insistente e, hesitante, ela tentou sorrir novamente. Um sorriso começa a bailar nos lábios da criança, aumentando para um gargalhar contagiante que a mãe lhe disse, admirada: "qual é a graça? bem que a tua mãe gostaria de dar uma gargalhada dessas!". E as rugas de preocupação desapareceram e ela sorriu descontraidamente; não chegou a gargalhar também por pura inibição. Ao ouvir essa risada tão saudável, ela interrogou-se "Até que ponto ao deixarmos de ser crianças, perdemos a confiança nos outros e os mal-entendidos começam? O olhar desta criança é tão límpido e a sua gargalhada tão cristalina... Não há lugar para mal-entendidos!". Saiu na paragem seguinte, sentindo-se bem consigo própria e o seu andar tornou-se leve, quase nem sentindo o chão sob os seus pés. Entrou na rua onde morava e à porta do prédio vê a sua vizinha. Pensou logo: "Ai se ela me vem chatear novamente..." mas o riso contagiante da criança ecoava ainda nos seus ouvidos, por isso, sem pensar, sem reflectir, disse: "Boa tarde, D. Amélia. Como tem passado? Hoje, já fez mais frio, não é?"
- Maggs -

Comments

O velho said…
Tu coloca-me paragrafos nisto, e deixa uns espacos, que assim tenho que ir buscar os meus oculos de velhote :-D

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