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Showing posts from 2010

Os donos do mundo

" A pobreza, em primeiro lugar, nunca foi para mim uma desgraça: a luz derramava sobre ela as suas riquezas. (...) Em todo o caso, o belo calor que dominava a minha infância privou-me de qualquer ressentimento. Vivia na penúria, mas também numa espécie de regozijo. (...) O mérito desta feliz imunidade não me cabe. Devo-a, em primeiro lugar, aos meus, a quem faltava quase tudo e invejavam pouco mais do que nada. (...) Além disso, estava eu próprio tão preocupado em sentir para sonhar com outras coisas. " Albert Camus, in "O avesso e o direito". O cheiro que impregnava o ar era nauseabundo. Porém, o quotidiano não tinha sido alterado. Os cães da zona permaneciam imperturbáveis na sua procura da melhor sombra do momento para dormitarem tranquilamente. As crianças brincavam com os detritos, recriando mundos de luz, cor e alegria. Com uma marcha cada vez mais acelerada, passei pelos cães, crianças e lixo, tentando não vomitar. A imagem do contentamento despreocupado das

Estranhos

Houve um tempo, quando éramos crianças, que dormíamos todos num colchão colocado no chão frio de cimento. Os nossos corpos, exaustos de um dia de correria e de travessuras, despudoramente se aconchegavam uns nos outros e dormíamos o sono dos justos, naquele pequeno colchão que, na altura, nos parecia imensurável. Éramos cinco rapazes e, nas últimas tropelias antes de finalmente adormecermos, sentíamos que o mundo era nosso, pois ele se reduzia àquele colchão. Não nos interrogávamos porque tínhamos de dormir todos num mesmo colchão que, com o passar do tempo, foi-se tornando pequeno para nós, pois os nossos corpos cresciam e precisavam de espaço. E à medida que íamos abandonando a brincadeira e começávamos a trabalhar, o colchão tornou-se um local onde corpos inertes procuravam esquecer o que tinham feito durante o dia e, sem nos darmos conta, fomo-nos tornando estranhos, uns perante os outros e perante nós próprios. E hoje, aqui nesta casa mortuária, olho para os meus irmãos e sinto qu

Partilha

O cheiro forte, distinto do café, ainda a borbulhar no bule, silenciou-os. Conversavam animadamente sobre algo que, naquela transição de tempo em que o aroma a café inundou a cozinha, perdeu toda a relevância e urgência. Quedaram-se mudos, enquanto ela vertia o café numa chávena e depois o saboreava. Ele tinha recusado beber café, porém, agora, ao observá-la tão deliciada, tão plena de satisfação, ficara arrependido. Sorriram e ela estendeu-lhe a chávena, dizendo: - Mas o que estávamos mesmo a conversar? Ele pegou na chávena, partilhando o café com ela, afagou-lhe o rosto e respondeu: - O que quer que fosse... já não tem importância. Saíram de casa, a porta da rua sendo fechada suavemente. Na cozinha, o odor a café fresco. No lava-loiças, a chávena de um café partilhado.