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Showing posts from September, 2007

Sonhando...

Com uma casa à beira-mar, de janelas abertas de par em par. Com o cheio a maresia, de presença constante. Com longas caminhadas, de pés molhados. Com as ondas brincando com as crianças de gargalhadas encantadoras. - Maggs -

Exílio

Estranho-me nesta cidade que me é estranha. O andar, desajeitado se encontra. As mãos, vazias se quedam. O olhar, ausente se fica. O chão, estéril se tornando à minha passagem. Harmonia, no recolhimento, aprendendo a viver na multitude dos eus igualmente na expectativa do reencontro. O chão, fértil se tornando à minha passagem. Esta cidade tornando-se suportável, mesmo aprazível. - Maggs -

Amizade

Tantos amigos! Tantos sorrisos em espontâneas gargalhadas se soltando. Tantos olhares que são ternos, que são firmes, também circunspectos, se revelando. Tantos abraços que ainda os sinto à minha volta, se quedando. Tantas saudades e tantos amigos! - Maggs -

António Aurélio Gonçalves

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Não o fiz de propósito mas parece que o fiz em boa hora. António Aurélio Gonçalves, conhecido por Nhô Roque, nasceu no dia 25 de Setembro de 1901, na cidade do Mindelo, em S. Vicente, Cabo Verde. Faleceu a 30 de Setembro de 1984. Os estudiosos poderão falar das suas obras (em Portugal, Noite de Vento e Terra de Promissão estão disponíveis através da editora Caminho), os ex-alunos como ele era como pedagogo. A Maggyzinha fala da terna lembrança de um homem de presença suave e agradável e de um sorriso discreto nos lábios. - Maggs -

Rua do Nhô Roque

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D. Bia era uma "senhora honrada", tal como ela fazia questão de frisar, empertigando o corpo pequeno, delgado e levantando ligeiramente o queixo. "Senhora honrada", dizíamos, porque "honradamente criei os meus seis filhos, ensinando-lhes a serem homens e mulheres honrados!" Costureira de profissão, "desde que me entendo por gente.", repetia às clientes enquanto lhes fazia a prova da roupa. Ainda criança, mostrara aptidão para a costura e a mãe, aliviada, encaminhara-a para aprendiz de costureira. Era menos uma preocupação saber que uma das filhas estava orientada com uma profissão. E D. Bia, de forma determinada e persistente, criou a sua reputação. Trabalhava em casa e quando lhe pediam a direcção, dizia "Conhece a rua do Nhô Roque? Ao chegar lá, pergunte pela casa da D. Bia que toda a gente me conhece nessa rua." O quarto de costura da D. Bia dava para a rua do Nhô Roque e quando estava a trabalhar, as persianas de madeira da janela

Presença

Ainda a noite majestosa igualmente imperturbável dava lugar ao dia brilhante igualmente irrequieto já eu estava pronta para entrar pelo teu sono sorrateira igualmente resoluta e acompanhar-te pelo teu dia. Não é isso que me tens feito desde que nos apartámos? - Maggs -

Quiçá (II)

Entreaberta esta porta quiçá, ainda estranhos um do outro, hesitemos. quiçá, ainda sôfregos um do outro, ousemos. Porque esta chave foi encontrada Porque esta porta foi entreaberta sejamos corajosos e vivamos esta história. - Maggs -

Como um rio...

Tantas saudades nesta ausência nesta distância também na tua presença. Tantas saudades no encontro a separação tornando-se iminente. Tantas saudades saciadas em tempo algum quando o nosso tempo chegar. Porque são estas saudades que me fazem desaguar em ti, nesta ausência nesta distância também na tua presença. - Maggs -

Nha fidjo matcho

Lá vai ele. Tão novo e com tantas responsabilidades. Os calções vão escorregando à medida que ele caminha e ele, de modo automático, puxa-os para cima com a mão esquerda porque com a mão direita vai conduzindo o seu carro de lata. Deixai-o viver a sua infância. Não haverá tempo para uma criança se tornar adulta? Mas, basta estarmos vivos para estarmos sujeitos à adversidade... Santiago regressava a casa depois de uma tarde com os amigos a jogar à bola. Também tinham feito um concurso de melhor carro de lata do mundo e o seu tinha ficado em segundo lugar. Ele sabia que para a próxima conseguiria o primeiro lugar porque ía pedir à mãe para comprar latas de azeite da marca X. É que essas latas tinham maior maleabilidade. Os planos já estavam todos feitos... E lá puxava ele os calções com a mão esquerda, enquanto a mão direita puxava o seu carro de lata, com uma carica como medalha de um honroso segundo lugar. Ao entrar em casa pela porta da cozinha, pronto para gritar a plenos pulmões qu

Menina-moça-mulher

Peço-te, mantém-te imóvel um pouco mais. Se puderes, se quiseres... Peço-te, mantém-te imóvel um pouco mais. Por um instante, por uma eternidade. Como entenderes... Peço-te, prolonga um pouco mais esse sorriso que é meigo, que é sensual, esse olhar que é vivo, que é apaixonado. És menina-moça-mulher com esse sorriso, com esse olhar. - Enganaste-me tão bem com essa carinha de santa - Peço-te, mantém-te imóvel um pouco mais. Quero guardar esse sorriso esse olhar que são tão intensos... Serás sempre minha mas sei que preciso deixar-te partir. - Maggs -

Quiçá (I)

A porta fechada, trancada. A chave escondida, olvidada. Quiçá, de dia acanhados, inibidos, não ousemos. Quiçá, de noite desprotegidos, autênticos, não hesitemos. Porque esta chave precisa ser encontrada. Porque esta porta precisa ser aberta. Porque esta história precisa ser vivida. - Maggs -

(Re)encontro

Estes grilhões que me prendem Estas correntes que me sufocam hão-de desaparecer. Nesse dia - que chegará certamente - entrarei nessa barca que, por mim, implora incessantemente navegarei destemidamente chegarei infalivelmente os pés na areia molhada e alegremente seguirei ao meu (re)encontro. - Maggs -

Beijo

No enamoramento, estremeceu, ruborizou. Na face, o beijo atrevido. No ar, a gargalhada cristalina. Na saudade, dormia, sonhava. Na face, o beijo terno. No ar, a presença de uma ausência. - Maggs -

Chuva (I)

Chove, persistentemente. Anoitece, impiedosamente. A janela aberta, teimosamente. A água, caindo melodiosamente. A terra molhada, exalando despretensiosamente. - Maggs -

Chuva (II)

Choveu. Anoiteceu. A terra saciada. A chama extinta. O coração aquietado. - Maggs -

Variações sobre o mesmo tema (II)

Todos os dias cumpria o mesmo ritual. Ao aproximar-se de casa, ao fim de um dia de trabalho, sentia crescer nela a expectativa de que naquele dia seria diferente. Tinha sempre a esperança de que ao abrir a caixa do correio encontraria a carta. E todos os dias, a carta não chegava. Sabia que tal não aconteceria, porém isso não a esmorecia. Pelo contrário, tinha aprendido a saber esperar. Na tranquilidade da noite, escrevia uma nova carta. Eram cartas corriqueiras, que descreviam o seu dia-a-dia. Queria que ele soubesse que estava bem, acima de tudo. No dia seguinte, no caminho para o trabalho, passava pela estação dos correios e enviava a carta. Ao fim do dia, a expectativa voltava a crescer. Uma noite sonhou que ele lhe dizia: "Tens de me vir buscar, tens de vir lutar por mim. Não consigo quebrar estas muralhas." Ainda o sol, timidamente, lançava os seus raios de luz para o início de um novo dia, já estava pronta para ir ter com o destinatário das cartas. Ao chegar, bateu à p

Variações sobre o mesmo tema (I)

Perdoa-me por insistir por galgar por invadir para chegar ao último reduto onde estás qual Senhor de um reino órfão. Perdoa-me por não arredar pé por não desistir Aprendi a saber esperar. - Maggs -

Variações sobre o mesmo tema (III)

Perdoa-me por vacilar por duvidar por questionar ao chegar ao último reduto onde estás qual Senhor de um reino auto-suficiente. Perdoa-me por arredar pé por desistir Aprendi que não queres que eu espere. - Maggs -

Encontro

Na antecipação do nosso encontro, ensaio as palavras, ensaio os gestos. E, no meio da multidão, mesmo antes dos meus olhos repousarem sobre os teus, sentirei a tua presença, sentirei que me observas à distância - insistentemente, sentirei que tens estado à minha espera - pacientemente. Na antecipação do nosso encontro, ensaio as palavras, ensaio os gestos. Aproximar-me-ei, hesitante e trémula. Não haverá palavras. Não haverá gestos. Aninhar-me-ei no teu peito que me parecerá imenso e apaziguador e envolver-me-ás no teu abraço. Na antecipação do nosso encontro, não vou ensaiar as palavras, não vou ensaiar os gestos, muito menos o meu olhar pois ele é límpido e cheio de saudades tuas. - Maggs -

Uma ida ao cinema

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Cidade da Praia, Cabo Verde - 1986 Saíamos de casa, descíamos a rua do Hospital, virávamos na primeira rua à direita, depois na primeira à esquerda, continuávamos a descer por essa rua e virávamos na primeira à direita, atravessávamos o jardim da Escola Grande e chegávamos ao cinema. Outras vezes, continuávamos o passeio até à praça Afonso Albuquerque e os meus pais compravam mancarra às vendedeiras que estavam no jardim da Escola Grande. Há um filme que vimos no cinema da Praia que me marcou de tal forma que ainda gravo na memória algumas imagens, como se tivessem ficado congeladas para sempre. Do que me consigo recordar, a história passa-se num bairro de operários e há um avô que ganha a vida a comprar e a vender bens usados, usando uma carroça puxada por um cavalo. O neto costuma acompanhá-lo e juntos apregoam os serviços do avô através de uma canção. O avô morre e a imagem que tenho bem vincada na minha memória é a de um grande plano da cara do menino e ele a lembrar-se (agora sei

Conversa à porta de casa

"Foi num dia igualzinho a este que nasceste. Estava este calor seco e não corria uma única brisa.", ía dizendo a avó enquanto Santiago se sentava perto dela, no mocho que tinha trazido da cozinha. O cão Pulgas, percebendo que o dono não estava para aventuras, deitou-se prazenteiramente aos pés de Santiago que lhe ía acariciando as longas orelhas castanhas. Era uma tarde de Domingo e Nha Maria e o neto estavam sentados à porta de casa, aproveitando a sombra que batia ali sempre por essa altura do dia. As pessoas que íam passando, paravam e cumprimentavam Nha Maria, perguntando-lhe pela saúde e família, acabando, invarialmente, a conversa dizendo: "Mas este é o seu neto? Cada vez mais parecido com o pai!". Nha Maria adorava contar estórias e Santiago era um excelente ouvinte, sempre de olhos arregalados, narinas dilatadas e de lábios entreabertos como se assim conseguisse absorver melhor todos os detalhes do que ela estava a contar. Mas ele não era o único ouvinte

A composição

Naquele dia, a professora sentia-se particularmente cansada e a turma estava irrequieta. Por isso, ela mandou que os alunos fizessem uma composição onde falassem sobre eles. Eis uma delas: "O meu nome é Santiago A.. Tenho 7 anos. Moro numa casa de cor verde com os meus pais mais a minha avó. A minha avó é a mãe do meu pai. Tenho um cão que se chama pulgas. Gosto muito do pulgas. O pulgas é pequeno, castanho e tem orelhas grandes. O pulgas gosta muito de brincar e eu gosto de brincar com ele. Mas, como diz a minha mãe, tenho de lavar sempre bem as mãos depois de brincar com o pulgas, principalmente se for comer. A minha avó faz doce de mancarra. Eu gosto muito de comer o doce de mancarra que a minha avó faz. E quando eu for grande, quero ser piloto-aviador porque quero conhecer o mundo inteiro. E é isto que eu quero dizer sobre mim." - Maggs - ________________ Em Cabo Verde chamamos mancarra ao amendoim.

Pedido

Deixa que os meus dedos passem pela tua testa, desmanchando essas linhas de preocupação. percorram a linha dos teus lábios, desenhando um sorriso. toquem o teu coração, compassando-o com o meu. enlacem nos teus dedos, iniciando a nossa jornada. - Maggs -

Espelho

Aproxima-te. Não tenhas receio. Nada mais sou do que o reflexo da tua alma. Aproxima-te. Sou eu que te chamo. Olha para mim, para ti, para nós. Aproxima-te. Tenho tanto para te dizer. Aproxima-te. Não te inibas. O mundo pode ser teu. Basta acreditares. - Maggs -

Feitiço

Ontem, dancei ao luar. Enfeitiçada por ti me sentindo. De vestido branco, diáfano, revelei-me na minha verdadeira dimensão - sem máscaras. Hoje, sob o sol brilhante, o feitiço desapareceu. Porém, continuas aqui ao meu lado. Decerto, foi mais que um simples encantamento. - Maggs -

Umbigo

O meu umbigo é redondo. O meu umbigo é perfeito. O meu umbigo é único. Levanto o olhar. A minha vida aconteceu e eu não dei por nada. - Maggs -

Rádio de Cabo Verde

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Cabo Verde, visto do espaço Passei esta última semana na míngua da rádio de Cabo Verde. Estando aqui na América profunda, esta situação levou-me a grandes inquietudes de alma. Agora mesmo estou a ouvir o inconfundível Bana e já não estou aqui, em Omaha, mas sim, à beira-mar sentindo o cheiro a maresia, ouvindo o gargalhar das crianças que mergulham nas ondas do mar, observando a vendedeira que apregoa doces, água de côco ou manguinhas, ouvindo o som do cavaquinho que ressoa em mim vezes sem conta. Nunca senti tanto a 'dor da saudade' tal como estou a senti-la neste ano aqui em Omaha. Por outro lado, são estes momentos que nos fazem ir mais além no conhecimento de nós próprios e dos nossos limites. E aqui, em Omaha, confirmo o que eu dizia a meia-voz quando estava em Londres: 'para sabermos para onde vamos, temos de saber de onde viemos'. E no meu caso pessoal, é a minha ligação forte, vibrante com Cabo Verde que me faz ir mais além, que me faz procurar novos desafios,

Credit score

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É difícil explicar o que não se entende, por isso, tentarei o meu melhor para explicar esta história do credit score . Aqui , contei que tive de deixar um depósito de 75 dólares na empresa que me fornece o serviço de internet, visto eu não ter um historial de crédito. Tentando mudar isso, fui aconselhada que a melhor maneira de começar a fazer o meu historial de crédito seria através da aquisição de um cartão de crédito. Lá voltei à questão retórica de "quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha?" pela dificuldade em obter o cartão visa: não tem historial de crédito; mas se não tenho historial de crédito, como posso então começar? Porém, o banco onde tenho conta decidiu contemplar-me com um secured visa card . Este cartão visa difere dos outros porque o valor do plafond no cartão tem de estar sempre disponível na minha conta a prazo. ... Quanta magnanimidade perante esta pobre criatura que quer construir um historial de crédito porque já não pode ouvir mais o comentário que &

Oásis

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Há um grito que não ecoa. Há uma dor que não mitiga. Há um olhar que não acontece. Porém, no recesso da alma, tudo se apazigua, tudo se harmoniza, tudo faz sentido. Há uma voz que chama. Há um odor que inebria. Há uma mão que guia. - Maggs - ________________ Tenda no deserto do Sahara foto de Dan Heller

No campo de batalha...

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"Que é isto? Vou cair? As pernas tremem-me?", disse de si para consigo, e caiu de costas. Reabriu os olhos na esperança de ver o resultado da luta dos franceses com o artilheiro e de saber se sim ou não este fora morto e se as peças tinham sido tomadas ou salvas. Mas nada mais viu. Por cima da sua cabeça nada mais havia além do céu, um céu muito alto, não claro, imensamente alto, onde erravam tranquilamente pequeninas nuvens cinzentas. "Que calma, que paz, que majestade!", pensava. "Não era assim aquando da nossa louca corrida, no meio dos gritos e da batalha; não era assim quando, o furor e o meto pintados no rosto, o francês e o nosso artilheiro disputavam entre si o taco da peça; então não havia, como agora, nuvens errantes neste céu profundo e infinito. Como é que eu nunca tinha visto isto, este céu sem limites? E que feliz me sinto de o ver finalmente. Sim, tudo é vaidade, tudo é mentira, à excepção deste céu sem fim. Não há nada, absolutamente nada, além

Causas pessoais

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Hoje, no programa Fresh Air , da National Public Radio , ouvi uma entrevista muito interessante. A apresentadora do programa, Terri Gross, entrevistou o médico psiquiatra Charles Reynolds, da Pittsburgh University Medical School , que é especialista em depressões em pessoas com mais de setenta anos. Ele apresentou a viúvez, a reforma ou o abrandamento de uma vida activa, o aumento da dependência nos outros, entre outros motivos, como causas de depressão em idosos, tendo agora publicado um livro que pode servir de guia aos familiares no sentido de poderem reconhecer os sintomas. Segundo ele, estas pessoas não têm uma natureza depressiva, estando num processo de adaptação a uma nova realidade, por isso, se forem bem acompanhados poderão ultrapassar esta situação e conseguir uma vida com dignidade. Ele estava a fazer o internato em psiquiatra quando o seu avô, na altura com oitenta e nove anos, suicidou-se com uma arma de fogo. Ele descreveu o avô como uma pessoa que foi sempre muito acti

A maioridade

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Não me lembro se chovia nessa tarde, mas, em casa, sentíamo-nos como se estivessemos debaixo de uma chuva miudinha e persistente. Cruzámo-nos no corredor, as tuas mãos procuraram as minhas mãos que, muito provavelmente, deveriam estar frias. O meu olhar ficou preso no teu olhar e ficámos assim algum tempo, que pode ter sido um instante, que pode ter sido uma eternidade. Disseste-me: "Ganha asas e voa! Há outras auroras para veres e viveres." Assim fiz, voei. - Maggs - ______________ ___ Amanhecer no deserto da Namíbia foto de © T. Credner & S. Kohle, AlltheSky.com

Paragem de autocarro

Olhou para o relógio. Começava a arrepender-se de ter decidido esperar pelo autocarro em vez de fazer o percurso de quinze minutos a pé até ao bloco de apartamentos onde estava a viver desde que chegara à cidade. Puxou novamente a gola do casaco de encontro ao pescoço, tentando afastar o vento frio que teimava em entrar pela abertura do casaco. "Devia ter trazido um cachecol", pensou. Ainda não se adaptara à cidade e ao local de trabalho, por isso, a expressão triste e ligeiramente perdida no seu olhar. Lembrou-se da troca acesa de palavras entre dois colegas, devendo-se tudo a um mal-entendido. Como palavras inofensivas, ditas com uma entoação dura, podem ferir uma pessoa. Na sua opinião, se os colegas tivessem procurado conversar calmamente teriam chegado à mesma conclusão que ela - que tudo não passara de um mal-entendido. "Mas porque é que as pessoas não procuram comunicar-se melhor?". Nisto, baixou o olhar, com as mãos ainda agarradas à gola do casaco bem perto

Aprendizagem em Londres

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Aprendi a amar Londres, durante as minhas ausências da cidade. Por isso, em cada regresso agora - sim, porque são regressos - há uma forte sensação que nunca cheguei a deixar a cidade. Procuro mergulhar na cidade o mais rapidamente possível para deixar de ser mais uma turista e passar a ser mais uma anónima que vive na greater London . Tenho os meus lugares preferidos, que se situam na área de South Kensington , onde estudei durante três anos e vivi um ano e tal. Quantos percursos foram feitos a pé! O objectivo era 'perder-me' naquelas ruas antigas com casas ora em tijolo vermelho ora pintadas de branco com portas negras; entrar por ruas estreitas e ver pequenas lojas, restaurantes; ouvir pessoas a falarem em diversas línguas; ir aos restaurantes italianos da minha predilecção; experimentar comida tailandesa, indiana e os famosos crepes franceses. Mas, o que mais me atrai nessa cidade que é grande e que é suja, principalmente, nos locais de maior fluxo turístico (e.g. zona de P

Chamamento

Fala comigo, mesmo que eu não responda. Olha para mim, mesmo que eu feche os meus olhos. Toca-me, mesmo que eu não esteja ao alcance das tuas mãos. Ausentes um do outro, mas sempre no pensamento. - Maggs -

Golpe de estado

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Este golpe de estado foi diferente. Não houve derramamento de sangue e quem foi deposto, assim que percebeu que estava perante um facto consumado, recompôs-se e entregou, de forma respeitosa e abnegada, todo o seu saber, experiência e sentimentos ao novo líder. A ideia deste blog surgiu quando estava nos preparativos da minha viagem para os Estados Unidos. Pensei que seria uma maneira interessante de descrever os 'choques culturais' que iria vivendo. Além disso, sentia que não teria a oportunidade de escrever de forma exaustiva a todos os meus amigos sobre o que iria observando aqui. E um blog presta-se a isso, principalmente porque podemos adicionar uma imagem, etc... No entanto, parece que a ideia inicial de posts descritivos sobre o american way of living passou para segundo plano porque, inadvertidamente, abri uma porta que estava encerrada há muitos anos. Neste momento, já não mando aqui, limitando-me a ser o veículo de transmissão do que todas essas vozes têm para dizer

Logo mais, temos cuscuz com mel

Estava na sala de aula há menos de dez minutos e a impaciência já o dominava por completo. Afasta ligeiramente a cadeira, os braços cruzados sobre a mesa e apoia o queixo nas mãos que repousam uma sobre a outra. Tenta prestar atenção ao que a professora diz mas o seu pensamento está electrizado e ele não consegue compreender o que ela está a falar, no seu característico tom sério e compenetrado. Volta a sentar-se direito e o olhar foge para o que se passa lá fora. As janelas grandes da sala de aula permitem-lhe ter uma panorâmica geral do jardim defronte da escola primária. A sua impaciência nada tem a ver com a possibilidade de poder estar lá fora a brincar. Receando que a professora o chamasse à atenção, prende novamente o olhar nela e percebe vagamente que ela está a falar de multiplicação e divisão. Olha para o tecto, pensando "isso já eu sei! que bem que a minha mãe me explicou isso". Estavam os dois sentados na mesa da cozinha e a mãe tinha ido buscar a lata onde coloca

Para a Sãozinha Fonseca-Fragoso

Despedida.mp3 A minha cunhada que - para mim - é minha e de mais ninguém; que me apazigua a alma com a sua voz melodiosa e cheia de paz; que me olha de modo firme e decidido; que me faz rir com a sua maneira alegre de falar; que canta maravilhosamente ... E a nossa amizade que começou quando ela me foi buscar a casa dos meus tios e levou-me para um passeio até Cape Cod , onde fomos ver o mar e comer um genuíno clam chowder . Esta morna, despedida , é da autoria de Eugénio Tavares . E a voz... essa voz, é, obviamente, da minha cunhada. - Maggs -

A pétala

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Abraçou o travesseiro e procurou uma posição mais confortável. Entreabriu os olhos, fechando-os novamente quase que de seguida. Um sorriso bailava nos seus lábios. Apertou ligeiramente o travesseiro como se fosse alguém que estivesse ali ao lado, como se ela quisesse ter a certeza que estava alguém aí ao lado. Claramente, ela conseguia sentir a sua presença, ele tinha de estar ali! Voltou a adormecer. Ele olhava para ela com ternura e zelava para que ela dormisse serenamente. Era isso que ela sonhava, imaginava e sentia que estava mesmo a acontecer. Porém, ele começa a ficar irrequieto, evidenciando uma das características que a seduzia nele; ela que mantinha sempre uma postura rígida, principalmente quando estava com outras pessoas por puro medo de se expôr. Não fugindo à sua natureza, ele não consegue ficar deitado tranquilamente ao lado dela. Cruza as pernas, descruza-as, volta a cruzá-las. Depois, decide-se a cruzar os braços mas mesmo assim, não consegue ficar quieto por muito tem

A separação

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Tive medo... mas não era legítimo este sentimento? Perante mim, abria-se a imensidão do desconhecido. Preferi ficar no cais e nossas mãos, inicialmente unidas, foram-se apartando e eu não consegui dar o salto e acompanhar-te. Perdoa-me a falta de ousadia. Mas eu sei que me compreendes. Provavelmente, outros caminhos estão trilhados para mim, porém acompanhar-me-ás sempre. - Maggs - Monte Cara ao longe, S. Vicente, Cabo Verde (fotografia de Maguy-Mãe)

Podemos conversar?

Se eu ficar aqui, nesta esquina, ele não há-de escapar. Tem de passar por aqui a caminho de casa. E quando ele estiver a aproximar-se, vou para o meio do passeio, assim ele não terá hipóteses de pretender que não me viu. E farei isso com tamanha arte que não lhe darei tempo para mudar de passeio. Sim, esta esquina é o melhor sítio para apanhá-lo e ... e conversarmos. Não consigo continuar assim. E o melhor é falar claramente, pedir-lhe com consideração mas sem me humilhar. Também tenho a minha dignidade! Bem, então deixa-me pensar melhor como é que vou iniciar a conversa. Digo, 'olá. tudo bem?' ou 'há quanto tempo! o que tens feito?' mas assim já estou a querer saber muito. Vou ficar pelo 'olá. tudo bem?', dito de forma descontraída. Aí vem ele! O que faço agora? Se calhar é melhor eu tentar isto noutro dia. Sim, é melhor. Não, ele já me viu. Bem, então deixa-me aproximar-me e tentar parecer que estou aqui de forma casual. Sorrio, sei que foi de forma suplicante

A prenda

O laço, em vermelho garrido, contrastava alegremente com o papel de embrulho em branco-alvo. A espera tinha sido longa e agora lhe parecia que lhe dava um prazer particular em contemplar um pouco mais o embrulho, em vez de o abrir rapidamente. Provavelmente, iria guardar o laço tentando não o estragar ao desembrulhar a prenda. Mas este laço não iria para a caixa dos laços e papéis de embrulho que são depois re-utilizados para outras prendas. Teria de o colocar num lugar especial, onde pudesse simplesmente deitar-lhe o olhar quando passasse por perto. De olhos bem abertos, continuava a admirar o embrulho, mantendo uma certa distância e assim poder contemplar melhor o arranjo. E como aquele tom de vermelho lhe encantava. A pessoa que estava ao lado diz-lhe "Então? Esperaste tanto tempo e agora não abres a prenda?". Esta voz quebrou o encanto mas rapidamente ele foi recuperado porque não há deleite maior que a antecipação de algo bom nas nossas vidas? ... Ainda mais que o evento

Korda Kauberdi

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Grupo Korda Kauberdi , à porta do cinema Éden Park, Mindelo, S. Vicente, Cabo Verde Os mais velhos do que eu terão mais recordações do tempo do grupo de teatro Korda Kauberdi , sob a direcção do meu pai Francisco Fragoso. Melhor, terão outras recordações. Eu tenho as minhas, bem marcadas, apesar de na altura estar na minha infância. Por terem sido vividas através do olhar de uma criança, elas tornam-se especiais porque a criança dá sempre o seu colorido, a sua interpretação muito própria e de acordo com a "experiência de vida" de uma pessoa com menos de dez anos. A mais doce e agradável é a seguinte: Eu fazia os possíveis por adormecer, na parte de trás do nosso volkswagen carocha amarelo, durante o percurso entre o jardim-escola da Gulbenkian, na Achada de St.º António - local dos ensaios - até à nossa casa na rua do Hospital, no Plateau . Hoje, podemos apanhar trânsito (dentro da realidade de Cabo Verde) mas naqueles tempos o percurso fazia-se rapidamente. Claro que não con

Rituais de celebração

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Desde que aqui estou, nesta América profunda, tento observar as diferenças no quotidiano das pessoas daqui em relação ao que estou habituada. A possibilidade de observar estas diferenças in loco é que fazem valer a pena estar tão longe daquilo que estou habituada; a oportunidade de compreender, absorver e respeitar a diversidade. O que me surpreende mais são os 'rituais de celebração' dos eventos ao longo do ano. Ainda não chegámos ao grande momento do ano - o Natal - mas já consigo perceber que estes rituais tornam-se também uma forma de interacção no local de trabalho. Na passada 6ª feira, logo pela manhã, ao entrar num dos corredores de acesso do departamento, o meu olfacto não me enganou: cheirava a pipocas! Viro à esquerda e entro no corredor principal do departamento, onde estão três dos quatro aceleradores lineares do departamento de radioterapia e vejo pequenos sacos transparentes de plástico com pipocas e no meio do branco amarelado das pipocas - na certa, eram pipoc

À caça do 1%

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Tenho andado incansavelmente à caça do 1%. Dei por mim tão embrenhada neste pequeno rectângulo de investigação que após longas horas de olhos fixos no monitor do computador, senti que houve um EU que se dissociou de mim. Este EU olhava para mim de forma persistente, impondo a sua presença de tal forma que eu não via mais o monitor mas somente estes (meus) olhos fixos em mim. Este EU coloca-me sempre em apuros: chama-me insistentemente para irmos ver a vida lá fora; para não descurar a minha grande causa; para não mergulhar-me de tal forma no 1% que esqueça a minha ambição de poder contribuir que pessoas com cancro nos países em desenvolvimento consigam ser tratadas ao nível dos 5-10% - correcção, que sejam tratadas! Mas consigo convencê-lo que iremos muito em breve estar à beira-mar e sentir o mundo a vibrar e que prometo, prometo, prometo empenhar-me mais no meu compromisso de contribuir com os meus conhecimentos para a luta contra o cancro nos países em desenvolvimento. E como todos

Deserto

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Por onde andas?... eu não sei. Mudas de forma, de cor, de tom. Escapas-me por entre os dedos das mãos que nem a areia quente do deserto. Viajantes imaginários que vou encontrando nesta minha demanda dizem-me que estás bem; que a última vez que souberam de ti estavas no deserto (da minha alma); que estás como queres e como gostas de estar. Sei que estás bem longe - lá no deserto - mas quero continuar a pensar que estamos juntos, apesar de vivermos em mundos diferentes. - Maggs - Deserto do Sahara - foto de © Eugene Reshetov