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Os donos do mundo

" A pobreza, em primeiro lugar, nunca foi para mim uma desgraça: a luz derramava sobre ela as suas riquezas. (...) Em todo o caso, o belo calor que dominava a minha infância privou-me de qualquer ressentimento. Vivia na penúria, mas também numa espécie de regozijo. (...) O mérito desta feliz imunidade não me cabe. Devo-a, em primeiro lugar, aos meus, a quem faltava quase tudo e invejavam pouco mais do que nada. (...) Além disso, estava eu próprio tão preocupado em sentir para sonhar com outras coisas. " Albert Camus, in "O avesso e o direito". O cheiro que impregnava o ar era nauseabundo. Porém, o quotidiano não tinha sido alterado. Os cães da zona permaneciam imperturbáveis na sua procura da melhor sombra do momento para dormitarem tranquilamente. As crianças brincavam com os detritos, recriando mundos de luz, cor e alegria. Com uma marcha cada vez mais acelerada, passei pelos cães, crianças e lixo, tentando não vomitar. A imagem do contentamento despreocupado das

Estranhos

Houve um tempo, quando éramos crianças, que dormíamos todos num colchão colocado no chão frio de cimento. Os nossos corpos, exaustos de um dia de correria e de travessuras, despudoramente se aconchegavam uns nos outros e dormíamos o sono dos justos, naquele pequeno colchão que, na altura, nos parecia imensurável. Éramos cinco rapazes e, nas últimas tropelias antes de finalmente adormecermos, sentíamos que o mundo era nosso, pois ele se reduzia àquele colchão. Não nos interrogávamos porque tínhamos de dormir todos num mesmo colchão que, com o passar do tempo, foi-se tornando pequeno para nós, pois os nossos corpos cresciam e precisavam de espaço. E à medida que íamos abandonando a brincadeira e começávamos a trabalhar, o colchão tornou-se um local onde corpos inertes procuravam esquecer o que tinham feito durante o dia e, sem nos darmos conta, fomo-nos tornando estranhos, uns perante os outros e perante nós próprios. E hoje, aqui nesta casa mortuária, olho para os meus irmãos e sinto qu

Partilha

O cheiro forte, distinto do café, ainda a borbulhar no bule, silenciou-os. Conversavam animadamente sobre algo que, naquela transição de tempo em que o aroma a café inundou a cozinha, perdeu toda a relevância e urgência. Quedaram-se mudos, enquanto ela vertia o café numa chávena e depois o saboreava. Ele tinha recusado beber café, porém, agora, ao observá-la tão deliciada, tão plena de satisfação, ficara arrependido. Sorriram e ela estendeu-lhe a chávena, dizendo: - Mas o que estávamos mesmo a conversar? Ele pegou na chávena, partilhando o café com ela, afagou-lhe o rosto e respondeu: - O que quer que fosse... já não tem importância. Saíram de casa, a porta da rua sendo fechada suavemente. Na cozinha, o odor a café fresco. No lava-loiças, a chávena de um café partilhado.

No meu peito

Não chores... Mas se tiveres mesmo de chorar, aninhar-te-ei no meu peito. Aqui, há tantas dores iguais às tuas. Não chores... Mas se tiveres mesmo de chorar, levar-te-ei à beira mar. Ali, há tantas lágrimas iguais às tuas. Não chores... Mas se tiveres mesmo de chorar, chorarei contigo. Bem sabes que as tuas dores são as minhas. Não chores... Mas se tiveres mesmo de chorar, pedir-te-ei para não chorares. É que o mar não é feito só de lágrimas e eu... Eu preciso que me sustenhas para poder então aninhar-te no meu peito.

A visita

Falaram-me tanto da sabedoria de Nha Clara e, agora, defronte a ela, não conseguia dizer nada. Sei que descera do Hiace e que, destemida, subira a ladeira até à casa térrea de Nha Clara. Porém, mal a vira sentada no mocho, à porta de casa, perdera toda a coragem para as perguntas prementes que tinha dentro de mim. Debruçada sobre um enorme balaio, Nha Clara descascava, sem pressas e metodicamente, vagens de feijões. Tirava uma vagem do balaio, puxava a linha, às vezes, com a ajuda de uma pequena faca, e, cuidadosamente, retirava os feijões e, sem desviar o olhar do balaio, deixava-os escorregar da sua mão e cair numa panela, colocada no seu lado direito. No seu labor, ainda não levantara os seus olhos para me ver e eu... eu hesitava em cumprimentá-la. Sentia-me mais segura a mirá-la e os seus gestos tranquilos aquietavam-me. Finalmente, pareceu ter sentido a minha presença, pois levantou o olhar, colocou a mão direita sobre os olhos e, com a mão esquerda, sem hesitações, fez-me sin

Bem-vinda

Não sabia. Não sabia que existias. Não sabia. Não sabia sequer o que almejavas - para mim -. Mas tu... Mas tu sempre soubeste tudo sobre mim. Quem eu era, quem eu sou. Eu? Eu não sabia nada disso sobre mim. E neste silêncio, nesta quietude, Eis que irrompeste do fundo de mim Livre e triunfante! Sê bem-vinda. Não sabia que existias - em mim -. Sê bem-vinda. Sai da minha sombra. É que não sabia que és a razão pela qual eu existo.

Os amantes

Para os amantes, o sol sumia vagarosamente no horizonte e o mar inflamava-se e fundia-se nos tons de vermelho e laranja do céu. A brisa trazia consigo o cheiro forte a maresia e Lígia, fechando os olhos, inspirava sofregamente e apertava com firmeza a mão de César. O rosto, luminoso, deixava transparecer a sua alegria interior por sentir novamente o cheiro característico do mar, transportando-a para a sua infância passada à beira-mar. Sem querer quebrar a ligação com o seu passado, Lígia, ainda de olhos fechados, aproximou a mão de César dos seus lábios e beijou-a ternamente. Com o pensamento perdido nas tonalidades do céu e do mar, César sorriu ao sentir a suavidade do toque dos lábios de Lígia. Pausaram a caminhada pela Marginal e César repousou o olhar em Lígia, que permanecia mergulhada nos cheiros da sua meninice. Maravilhado, César continuou a olhar para ela, tentando absorver a energia que irradiava dela. Queria entranhar-se nela e conseguir encontrar essa sua avidez inesgotáve