Estranhos

Houve um tempo, quando éramos crianças, que dormíamos todos num colchão colocado no chão frio de cimento. Os nossos corpos, exaustos de um dia de correria e de travessuras, despudoramente se aconchegavam uns nos outros e dormíamos o sono dos justos, naquele pequeno colchão que, na altura, nos parecia imensurável. Éramos cinco rapazes e, nas últimas tropelias antes de finalmente adormecermos, sentíamos que o mundo era nosso, pois ele se reduzia àquele colchão. Não nos interrogávamos porque tínhamos de dormir todos num mesmo colchão que, com o passar do tempo, foi-se tornando pequeno para nós, pois os nossos corpos cresciam e precisavam de espaço. E à medida que íamos abandonando a brincadeira e começávamos a trabalhar, o colchão tornou-se um local onde corpos inertes procuravam esquecer o que tinham feito durante o dia e, sem nos darmos conta, fomo-nos tornando estranhos, uns perante os outros e perante nós próprios. E hoje, aqui nesta casa mortuária, olho para os meus irmãos e sinto que somos efectivamente estranhos e que o corpo da minha mãe também me é estranho. E os meus filhos que agora dormem, felizes, num colchão colocado no chão frio de cimento, sem se perguntarem porque é que é assim, tornar-se-ão estranhos. Apático, pois é assim que me sinto, levanto-me da cadeira, despeço-me dos meus irmãos e de alguns familiares. Saio para a noite fria e faço o percurso a pé até aos Serviços Municipalizados da cidade. Não posso arriscar a perder o único trabalho que consigo arranjar... limpar os restos que a cidade despreza.




Não, não nos tornámos estranhos...
Houve um momento das nossas vidas que deixámos que os sonhos morressem e, com isso, a nossa alma tornou-se inanimada.

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